No dia 9 de junho, a Alemanha elegeu 96 das 720 cadeiras para o Parlamento Europeu. 46,6% dos votos foram para a direita, sendo 30% para a União Democrata-Cristã (coligação entre CDU e CSU) e 15,9% para a Alternativa para a Alemanha (AfD). Este tornou-se, assim, o segundo partido mais importante da Alemanha no âmbito europeu. O partido de Sahra Wagenknecht, dissidente – à direita – do Partido Social-Democrata (SPD), levou 6% dos votos.
A Coalizão Semáforo governista teve um desempenho pífio. O SPD, partido do chanceler Olaf Sholz, os Verdes e o Partido Democrático Liberal (FDP) angariaram respectivamente 13,9%, 11,9% e 5,2% dos votos, ou seja, pouco mais de um terço dos votos totais, contra metade conquistada pela direita. A esquerda representrada pela Die Linke levou 2,7% dos votos, ao passo que a do Volt, 2,6%.
Criada em 2013, em meio à crise da zona do euro e contra a permanência da Alemanha na União Europeia, a AfD cresce exponencialmente. De acordo com a pesquisa realizada pelo tagesschau, quem perdeu a maior parte dos votos foram os verdes, que sofreram uma queda abrupta em relação às últimas eleições (perdendo 8,6% dos votos). Essa perda revela uma mudança na centralidade de algumas questões em torno das quais tem girado a política europeia.
Para a maior parte dos eleitores (26%), a questão decisiva na escolha eleitoral foi “a manutenção da paz” – 4% a mais que na eleição de 2019. A segunda mais importante (23%) foi a seguridade social, que também subiu 3%. A terceira, imigração (17%), que aumentou 5%. Já a quarta questão, clima e proteção ambiental (14%), caiu nove pontos percentuais em relação a 2019. Como se vê nos quadros abaixo, enquanto a CDU e o SPD se mantém mais ou menos estáveis (após um tombo entre 2014 e 2019), a AfD sobe na medida em que os verdes declinam, o que pode indicar uma transferência de votos de um partido a outro:
Entre os eleitores da AfD, a imigração aparece em primeiro lugar (46%) como fator decisivo para a escolha eleitoral. A maior parte desse eleitorado tem entre 35 e 44 anos (20%), mas o voto no partido cresceu 7% nas faixas entre 25 a 34 (18%) e 11% na faixa dos 16 aos 24 anos (16%). O perfil do partido é bastante jovem (54%) e de classe trabalhadora (33%), o que indica uma insatisfação generalizada no âmbito do trabalho e da renda já que, além de ser composta por uma maioria trabalhadora, a AfD atrai principalmente a chamada população economicamente ativa. A maior parte do eleitorado tem somente educação básica e homens são maioria em relação às mulheres.
A AfD foi vitoriosa em Brandenburgo, na Turíngia e na Saxônia, estados que compunham a República Democrática Alemã – o que indica, por sua vez, uma espécie de questão setentrional no país, que se constituiu a partir da queda do muro de Berlim e do fim do socialismo. Os dados revelam o caráter ideológico da ideia de “reunificação” – um processo que ao invés de unir leste e oeste, subjugou o primeiro ao último. Quando a Alemanha oriental foi incorporada, houve um processo privatização e desindustrialização sem precedentes nessa região – um processo que submeteu os habitantes do antigo país socialista ao desemprego e subemprego – inclusive porque parte dos diplomas da RDA não foram reconhecidos posteriormente pela Alemanha Ocidental. É discurso corrente, entre os alemães, que a população do leste da Alemanha vota na AfD porque está acostumada a viver fora de um regime democrático. Mesmo com o crescimento perigoso do neonazismo nessa região, as consequências do processo de subjugação do leste não são reconhecidas e a propaganda da AfD apela constamente para o medo dessa população de ser mais uma vez a perdedora da história – o que explica muito mais o voto na extrema-direita que uma falta de gosto pela democracia.
A grande vitória nas eleições de domingo, segundo a interpretação que circula na grande mídia, explica-se, principalmente, pela rejeição ao governo da Coalizão Semáforo. E, de fato, o governo da Coalizão tem sido uma decepção da esquerda à direita. Mas a mera rejeição de um lado não explica a migração dos votos para a extrema-direita. Parece-me que, para explicar essa guinada, é preciso combinar a análise de conjuntura com uma análise da propaganda da AfD, que tem sido muito eficaz em mobilizar a insatisfação e o desejo de mudança que orienta atualmente a política nacional. Afinal, um partido de pouco mais de dez anos não obtém sucesso tamanho num país de regime parlamentarista a não ser que domine essa linguagem, o que significa dizer que a forma como esse movimento se organiza é fundamental para compreender como ele ganha cada vez mais espaço.
Conforme tenho defendido aqui, a indústria cultural digital contemporânea (leia-se, o sistema das plataformas) tem servido como a principal forma de organização da extrema-direita, substituindo a forma tradicional do partido e fazendo surgir um novo partido digital de massas, com capilaridade inédita na história da política mundial. Isso certamente vale para a AfD. O Brasil e outros países periféricos serviram de laboratório para uma forma de organização de que se torna cada vez mais difundida na Europa. Além disso, vale ressaltar que a análise dessa proganda de extrema-direita, que parte da esquerda preteriu como forma puramente ideológica em nome de uma “agência dos agentes”, permite observar quais os pontos de pressão intensificados por ela, dado que seu sucesso aponta para uma homologia entre emissor e receptor.
Como frisei, algumas questões como a guerra, a imigração, o crescimento do voto jovem na extrema-direita e a perda de importância da pauta do clima estiveram no centro dessa guinada. Uma vez que tenho pesquisado a propaganda bolsonarista nas redes sociais e, ao mesmo tempo, morado por diversos períodos na Alemanha nos últimos anos, passei a acompanhar também a extrema-direita por aqui. Creio ser extremamente necessário um estudo da propaganda de extrema-direita de forma comparativa, uma vez que ela se organiza globalmente pelas redes sociais. É preciso entender o que está acontecendo em cada um dos países nos quais ela cresce para traçar estratégias à esquerda.
Abaixo, comento, a partir da propaganda da AfD, alguns pontos que parecem relevantes para compreender o resultado de domingo.
A guerra
A entrada da Alemanha na guerra entre Rússia e Ucrânia “custou caro” sob diversos aspectos. A crise energética – sensível no aumento do preço do aquecimento na Alemanha nos últimos anos – e a insegurança social, econômica e mesmo ontológica trazidas pela guerra criaram um grande desapontamento com o governo da coalizão. E isso justamente num momento de saída da pandemia, quando a economia ainda se recuperava da crise anterior e a direita negacionista ganhava cada vez mais espaço. A inflação também aumentou sensivelmente.
Como tantos governos de extrema-direita – imiscuídos na internacional neofascista – a AfD mobilizou o discurso do “patriotismo” para criticar a participação da Alemanha numa guerra que “não era dela”, uma guerra que, como mostrou a pesquisa supracitada, causou empobrecimento e insegurança para sua população, algo que foi sentido intensamente no estados do leste, regiões que padecem de um alto índice de pobreza. Scholz diminuiu o orçamento para políticas sociais e aumentou os gastos com a re-militarização da Alemanha. A AfD culpa os Estados Unidos, mas especialmente, o governo de Joe Biden pela guerra e se aproxima cada vez mais de uma posição pró-Rússia.
De certa maneira, houve uma inversão de posições produzida pela guerra. Como se sabe, Merkel buscou construir uma longa (embora tensa) relação com a Rússia e com Vladimir Putin. Partidos como a CDU/CSU, o FDP e o SPD eram favoráveis à construção do gaseoduto Nord Stream entre a Rússia e à Alemanha, bem como a uma aproximação entre a Rússia e a União Europeia – mesmo após a anexação da Criméia pela Rússia em 2014. Após o início da guerra, os mesmos partidos apoiaram a Ucrânia e defenderam uma política de independência em relação ao gás russo. A AfD viu nessa mudança uma oportunidade política que rendeu de fato muitos votos: a crítica da guerra.
A ala da AfD mais favorável à Rússia é a fração concentrada na Bavária, que defende uma “União Econômica da Eurásia” – mas houve uma aproximação do partido como um todo com o governo de Vladimir Putin nos últimos anos. Dois de seus principais representantes, Maximilian Krah, expulso da corrente de Marine Le Pen “Identidade e Democracia” no parlamento Europeu por afirmar que “nem todo membro da SS [Schutzstaffel] era um crimonoso”, e Petr Bystron, deputado desde 2017 pelo partido, são atualmente investigados por colaborar com Viktor Medvedchuk, um ex-oligarca ucraniano ligado ao Kremlin, responsável por uma operação de desinformação ligada ao site Voz da Europa. Um vídeo no Instragram, no qual o programa da AfD é descrito em 60 minutos, pede o fim das sanções (em nome da colaboração com países de fora do bloco) e termina com a frase: “Menos União Europeia, mais liberdade”. A atual líder do partido, Alice Weidel, uma mulher lésbica (que é contra o casamento homoafetivo e que afirma, ao mesmo tempo, que o islamismo é uma ameaça aos homossexuais na Alemanha) também visitou Moscou nos últimos anos e tem conduzido uma campanha contra a entrada da Ucrânia na União Europeia. A propaganda anti-guerra da AfD foi amplamente difundida nas redes sociais:
Junto com esses pôsteres, a AfD ainda escreve, empregando um lema do pós-guerra [nie wieder, isto é, nunca mais] que faz referência imediata ao Holocausto: Nunca mais guerra!/ Nunca mais guerra em solo alemão!/ Nunca mais guerra com participação alemã!/Nunca mais guerra com armas alemãs!/Repensar”. Além de aludir ao medo de uma sociedade que se destruiu e foi destruída duas vezes pela guerra, nota-se aqui a clássica tática de inversão, desvio ou interversão da propaganda fascista, uma vez que diversos membros da AfD são negacionistas do Holocausto – como Björn Höcke, um dos líderes do partido, que é abertamente neonazista. Professor de história e especializado em história alemã, ele defende um giro de 180 graus na “política da memória”. A utilização dos slogans do pós-guerra contribuem com esse apagamento histórico, que reposiciona os neonazistas e o povo alemão na história, como verdadeiras vítimas de uma guerra que não é deles.
Mas isso não significa que a AfD seja pacifista. Além do apoio ao genocídio em Gaza (um ponto de contato com a Coalização Semáforo) – a despeito de seu antissemitismo manifesto (o que demonstra que a guerra nada tem a ver com isso) –, o partido defende o desenvolvimento de armas atômicas na Alemanha – ao lado da CDU/CSU, do FDP e, agora dos Verdes, adversário de longa data da estratégia nuclear (indicando que uma nova corrida armamentista está na esquina) – e a energia atômica como solução para os problemas ambientais, energéticos e políticos. Justamente em 2023, a Alemanha comemorava o fechamento das últimas três usinas nucleares que possuía, indicando o fim de uma era atômica no país. A energia e as armas atômicas também garantiriam ao país, segundo o discurso da AfD, independência em relação aos Estados Unidos e à OTAN, uma vez que a Alemanha não tem armas nucleares e depende do Oriente Médio (novo parceiro comercial após o rompimento com a Rússia) para a importação de energia. A política alemã, em poucos anos, retroceu décadas. A Alemanha se prepara para guerra e acabou de abrir um programa de alistamento voluntário para ampliar seu contingente reservista. Homens e mulheres dispostos a passar pelo menos seis meses no programa vão ganhar entre 1500 e 1900 euros por mês.
De qualquer forma, é impossível não notar que a AfD foi, entre os maiores partidos, o único que se contrapôs (sem dúvida, de forma cínica e oportunista, como toda a extrema-direita) à entrada na guerra, uma posição que cabia à esquerda (e ao governo) ter tomado. Ela se vendeu como “o partido da paz”. Ao fazer a população pagar pela guerra (logo depois de uma pandemia), a Coalizão Semáforo perdeu sua frágil popularidade e ainda revelou o papel subalterno da Alemanha em relação a outros países da OTAN, protagonizando uma re-militarização que a AfD também (e contra Scholz) quer levar às últimas consequências com o desenvolvimento de armas nucleares. Nesse contexto, esse pode ser um ponto possível para uma futura coalizão de extrema-direita.
Greenlash e o futuro
O sucesso eleitoral dos Verdes na eleição do Parlamento Europeu de 2019, e do (já desacreditado e neoliberal) Green New Deal advindo desse contexto não sobreviveram à pandemia, à guerra e à inflação. Muitos europeus que são a favor da transição energética se deram conta de que não querem eles próprios pagar por ela – o que ficou evidente nas urnas.
Embora suas afinidades com o neoliberalismo sejam evidentes, os Verdes emergiram dos movimentos de protesto da década de 1960 e defenderam uma política externa pacifista até 1999, que se encerrou com a participação do partido, que fazia parte da coalização do governo, na Guerra do Kosovo. O apoio dos Verdes à guerra (maior que o do SPD) e seu protagonismo no envio de armas pesadas à Ucrânia fizeram sua popularidade despencar. Ademais, o acordo de energia com o Qatar, a exploração da mina de carvão de Lützerath e os escândalos de corrupção e de acordos secretos com a empresa de energia RWE (uma das maiores emissoras de carbono do país) que rondam Annalena Baerbock e Robert Habeck, dos dois maiores representantes do partido na coalizão, desgataram ainda mais a confiança no partido. Patrick Graichen, braço direito de Habeck no partido, apontou seu padrinho de casamento para a presidência da Agência Alemã de Energia. Além disso, Habeck foi fortemente atacado por seu envolvimento com o plano de fechamento das usinas nucleares em meio à crise energética de 2022.
Os Verdes são talvez o maior inimigo da AfD e um dos principais alvos de sua campanha. Além de explorar a hipocrisia do partido, que defende a transição energética, mas apoia a exploração de minas de carvão e, agora, a corrida nuclear, a AfD também mobilizou intensamente a ideia de que os Verdes são o partido do privilégio, daqueles que podem sacrificar o presente para garantir o futuro. Em sua campanha, a AfD associou a transição energética à desindustrialização e, portanto, ao enfraquecimento da classe trabalhadora alemã, ainda fortemente empregada na indústria (o que explica em parte a adesão da classe trabalhadora às suas pautas) – vale lembrar que a Alemanha é o país mais industrializado da Europa:
Todas essas propagandas, circuladas no Instagram, mostram como a AfD explorou a crise dos Verdes e obteve sucesso em reverter a pauta da crise climática (como se viu nas pesquisas e nas urnas). Como na pandemia, que preparou o terreno em muitos aspectos para essa ascensão, a AfD sustentou um discurso de combate ao pânico. Vale dizer que a Alemanha tem políticas de natalidade para lá de complicadas de uma perspectiva feminista e, para a extrema-direita, o incentivo à família envolve a manutenção da identidade e da raça alemãs. O cenário apocalíptico do clima ou, como eles propagandeiam, a “histeria climática”, estaria contribuindo para a decância do povo alemão.
Além disso, essa propaganda pressiona e ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta à tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades de agricultura, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles se via uma bandeira pendurada: “Farmes for future” [Fazendeiros pelo futuro], uma referência distorcida ao movimento “Fridays for future” [sextas-feiras pelo futuro], um dos maiores movimentos sociais da Alemanha e da Europa atualmente (cuja maior expoente é Greta Thunberg). Como no Brasil, a propaganda ligada ao agronegócio busca resignificá-lo: ao invés de um empreendimento capitalista extremamente neoliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições do campo, alimenta as pessoas e cumpre, assim, até mesmo uma função social – com isso, a AfD também ganha força no interior do país e reativa o ódio nazista às grandes cidades e a seu cosmopolitismo (vale mencionar o ódio de Hitler a Berlim, por exemplo).
Esse tipo de propaganda, por fim, também é capaz de expandir a noção de econômico e fazer as pessoas sentirem-na no seu cotidiano.
No vídeo, em que várias razões para não se votar na AfD são elencadas – “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se acha que homens podem engravidar, não vote na AfD” –, aconselha-se às pessoas que gostam de comer insetos, que não votem na AfD. A afirmação estapafúrdia associa a questão climática ao fim do gozo com a comida, na nossa sociedade associado ao consumo de carne (não à toa, o veganismo também é um dos alvos favoritos da direita) e é uma tática que já foi utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. A ideia é levar ao limite os cenários de sacrifício que a crise climática atual exige e, assim, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, sequer reconheçam o problema – uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo tão inacreditáveis são os exemplos. A Alemanha, embora tenha diminuído sua emissão de CO2 (2024 foi o nível mais baixo dos últimos 70 anos), em 2024, já consumiu em 4 meses o que deveria ser consumido, num patamar sustentável, em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige de seus eleitores sacrifícios e, além disso, promete recompensas no presente. Uma política de esquerda precisa estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no seu centro a mera sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.
O bode expiatório: Re-imigração
No dia 2 de junho de 2024, numa manifestação de extrema-direita, um imigrante do Afeganistão esfaqueou um policial em Mannheim, que morreu em seguida. Esse caso, muito comentado na Alemanha, incendiou as redes sociais da AfD antes da eleição para o Parlamento Europeu. Scholz chegou a falar em “deportação de criminosos” a partir do caso. O tópico da re-imigração – o projeto de mandar os imigrantes de volta para os seus países, ou seja, em termos explícitos, de deportações em massa – dominou o debate na última semana.
A AfD ofereceu como resposta para a desigualdade de renda, a crise inflacionária e energética produzida pelo que Herbert Marcuse chamou de Warfare State , um projeto de des-imigração ou de re-imigração. A política vem na esteira da crise de 2008, mas a técnica é antiga e tem raízes históricas na Alemanha nazista. A Europa tem uma longa história de racismo – típica de um continente imperialista e colonialista. Mas isso se intensificou com as migrações que ocorreram a partir de 2003 após a invasão dos Estados Unidos ao Iraque e a outros países do Oriente Médio, invasões que foram seguidas por vários países europeus. A migração foi acompanhada de uma onda de xenofobia no continente que deveria ter prevenido qualquer surpresa em relação aos resultados eleitorais de domingo. Mas, ao contrário do que afirma a AfD, a imigração na Alemanha não está apenas ligada à guerra.
É evidente, no país, a recusa dos alemães de exercer trabalhos ligados à reprodução social. A Alemanha tem flexibilizado as regras para obtenção de cidadania para atrair trabalhadores para esse setor. Contrata-se estrangeiros para o ensino infantil, trabalhos hospitalares, trabalhos de limpeza, cozinha, transporte, entre outros. Por isso, o argumento comum de que os “estrangeiros estão roubando empregos” foi repaginado e, hoje, a pauta da re-imigração tem menos a ver com a questão laboral – embora permaneça, como todo bode espiatório, com um fundo econômico e se entrelaça com questões de seguridade social, de raça e de gênero, como se vê nas propagandas abaixo:
Como se vê, a propaganda da AfD combina uma série de fatores. Ao recorrer ao slogan feminista “meu corpo, minhas regras”, inverte-o, (como faz a propaganda bolsonarista no Brasil), equiparando o corpo feminino ao território, para promover a islamofobia e negar às mulheres islâmicas o direito ao seu próprio corpo. O corpo não é mais o corpo individual das mulheres, mas a terra, comandada por seus proprietários, que têm direito “natural” a ela. Ao acusar o gasto associado à imigração por ser, como a guerra, uma fonte de déficit para a seguridade social – algo muito presente nessa última campanha para o parlamento, que pediu o fim do pagamento de benefícios sociais e atacou fortemente o subsídio para cursos de línguas para os imigrantes, o que é também uma forma de exclusão – , a propaganda restringe somente aos alemães “puro sangue” o direito à seguridade social. Cada vez mais a AfD defende que pessoas não brancas que possuem a cidadania alemã não são de fato cidadãos e cidadãs. A propaganda, mais antiga, dos “Novos Alemães? fazemos nós mesmos”, alude justamente a essa diferenciação dos “alemães por cidadania” (os novos alemães) e os alemães “de verdade”, “pelo sangue e pela raça” – o que, remete ao lema “sangue e solo”, revelando, assim, o caráter neonazista desse movimento. A teoria da conspiração da “grande substituição” de alemães por outros povos, de brancos por negros, e o medo do fim da “raça alemã” são temas hoje abertamente discutidos nos Natais, festas de família e amigos. Em uma festa recente em Frisia, uma série de jovens foram filmados fazendo a saudação nazista [Sieg heil] e cantando: “Fora estrangeiros: A Alemanha para os alemães”, frase utilizada por Adolf Hitler. O ataque à esquerda que considera o nome Mohammed como uma referência à religião (“a Alemanha se tornou mais espiritual”) e não à raça revela justamente como raça, cultura e religião são reunidas na islamofobia da AfD. Ademais, há uma associação cada vez maior nessa propaganda ao aumento dos crimes na Alemanha, como demonstra o meme que associa um estupro coletivo à imigração. Proteger mulheres e crianças também é tema constante de vídeos e fotos no Instagram. Por fim, vale comentar como a crítica ao multiculturalismo também revela um problema histórico da Alemanha: pode-se gostar de qualquer cultura, menos da sua própria, pois essa foi banida pela “política da memória”. A AfD reescreve a história da Alemanha, restaura o orgulho perdido com a derrota militar do país e revela que essa derrota militar não se traduziu, no longo prazo, numa derrota das ideias nazistas.
A ausência da esquerda na Alemanha (derrotada em 1919, em 1945 na Alemanha Ocidental e em 1989 na Alemanha como um todo) vai custar caro para o país, para a Europa e para o mundo. Enquanto não houver um partido que mostre que o principal problema é a concentração de renda e a política democrática liberal (leia-se: política capitalista neoliberal), a Europa vai se tornar um viveiro para o fascismo.
Juventude neofascista? Partido digital de massas e o neofascismo de plataforma
Depois das eleições parlamentares deste ano, é possível falar numa juventude neofascista na Alemanha. A Coalizão Semáforo reduziu a idade permitida de voto na Alemanha para 16 anos, incluindo mais de um milhão de eleitores. A partir de pesquisas eleitorais do governo, acreditava-se que os Verdes teriam a maior aceitação entre os jovens. Uma pesquisa feita em abril desse ano, no entanto, mostrou que o partido mais apoiado pelos jovens de 14 a 29 anos foi a AfD.
Partido de maior sucesso no Tik Tok, a AfD parece falar a língua dos jovens. A direita está na moda e, como disse um dos membros da juventude do partido, não é mais coisa de “tiozão”. A AfD conseguiu tornar o neonazismo cool. Ela não é um partido, mas uma “alternativa”. Tirando a palavra “partido”de seu nome, ela se apresenta como um movimento independente, que tem forte apelo aos jovens.
Sua campanha foi largamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza movimento (para a direita). A linguagem utilizada nos vídeos e posts de Instagram e Tik Tok é extremamente infantil, recorre a desenhos animados, cores chamativas, emoticons, barulhos como buzininhas, animais (galinhas de óculos escuros “lacram” em cima de notícias sobre Scholz e a crise no governo) e à estética mangá. Além disso, o partido trabalha com hashtags, como #azul ao invés de colorido (cor da AfD ao invés das cores da bandeira LGBTQIA+).
No Tik Tok, a propaganda é direcionada para os homens. Há uma retomada do masculinismo que acompanha a cisão de gênero na política mundial, especialmente entre os jovens. A tendência também é uma reacão ao movimento feminista e LGBTQIA+ (inclusive, os elogios à Rússia estão ligados à repressão a este último movimento). É comum achar nos vídeos do Tik Tok homens falando contra essa “merda de gênero”. Com isso, o apoio de homens jovens tem aumentado. A AfD, ao mesmo tempo, acompanha uma tendência mundial de pink washing do fascismo. Conforme já ressaltei, sua líder, Alice Weidel, é mulher e lésbica, mas sustenta posições extremamente reacionárias em relação às questões de gênero e sexualidade.
A AfD recusa o que a esquerda chama muito equivocadamente de “identitarismo”, mas fazem parte de “Os identitários”, movimento que nasceu na França e ganhou espaço na Alemanha. Os já citados Björn Höcke e Petr Bystron, políticos importantes do partido, são explicitamente ligados ao grupo. Trata-se sobretudo de uma ideologia que ressalta o direito natural dos povos europeus a seu continente, são contra a miscigenação, são islamofóbicos etc.
Só não vê quem não quer que o desempenho da AfD nessa eleição e da direita na Europa e no mundo só aumenta com a consolidação da nova infraestrutura digital e financeirizada da plataforma. Vale perguntar: quantos governos de esquerda surgiram depois disso e quantos de extrema-direita? Constestar esse modelo está cada vez mais difícil, mesmo entre parte da esquerda, para a qual qualquer posicionamento contra as redes sociais é uma forma de ludismo. Enquanto isso, os magnatas dessa indústria cultural se tornam cada vez mais ricos e exercem cada vez mais influência sobre a política. Não há “gabinete da ousadia” capaz de competir com esse modelo. Ter que jogar o jogo do Vale do Silício e de suas variantes regionais não é uma disputa, mas uma derrota.
A extrema-direita tem organizado seu partido internacional de massas a partir dessa nova infraestrutura digital, que combina a verticalidade (isto é, liga os líderes e influencers aos seguidores, desde a propaganda governamental nas redes sociais até as milícias digitais) e a horizontalidade (conectando grupos marginais outrora isolados). Paul Lazarsfeld, grande nome de pesquisas empíricas na sociologia e um dos principais nomes da “pesquisa de mercado”, escrevia, na década de 1940, sobre a importância de influenciadores para a escolha de compra de determinados produtos. Segundo ele, as pessoas só compram aquilo que é indicado por amigos ou parentes próximos – a melhor propaganda é aquela que tem um mediador. Ao encapsular os mercados, as plataformas introjetaram essa função “espontânea da propaganda” e esse modelo estendeu-se também para a política. Só que uma política de esquerda crítica e reflexiva, não cabe em memes apelativos e vídeos de 15 segundos. É preciso questionar o modelo como um todo, já que a propaganda nas redes não é mais apenas publicidade da extrema-direita, é seu principal modo de organização.
A direita obtém sucesso onde a esquerda está falhando. Eles podem mover as pessoas das redes para as ruas num piscar de olhos, enquanto nosso poder de mobilização declina no mundo todo. Estamos vendo surgir um neofascismo de plataforma e enquanto não estivermos dispostos a discutir a relação entre política e tecnologia, continuaremos a testemunhar resultados como o do dia 9 de junho.
Não representa minha opinião, estou apenas compartilhando uma matéria que eu achei que exibe informações o bastante sobre a extrema-direita alemã atual.
@NoahLoren o FreieDDR além de defender a volta da RDA, eles também defendem a criação de um estado socialista na União Europeia e em todos os países-membros da OTAN... É complicado viu, principalmente pq movimentos assim são fortemente reprimidos e censurados. Sem contar que as penas lá por movimentos assim são de 20 a 40 anos de prisão, e sem contar que ninguém se arriscaria tanto assim pra defender as pautas do FreieDDR etc.